O FARDO DA CURADORIA

Olu Oguibe*

Artigo Retirado da Revista Concinnitas Virtual. Ano 5 – N.6 – julho de 2004. ISBN 1981-9897

http://www.concinnitas.uerj.br/arquivo/revista6.htm

Texto publicado neste blog com a autorização do autor.

*Olu Oguibe é artista, crítico e curador. É professor associado de Arte e História da Arte da University of Connecticut. Realizou projetos de curadoria para importantes museus e galerias, entre as quais a Tate Gallery, Londres e o Museo de la Ciudad, Cidade do México. Seu trabalho tem sido exibido ao redor do mundo, em exposições individuais e coletivas, incluindo as Bienais de Johannesburg, Havana e Busan. É atualmente curador da seção “Americas” para a Bienal de Luanda, em 2005. Seu mais recente livro publicado é The Culture Game (University of Minnesota Press, 2004). Revisão Técnica de Ricardo Basbaum.

Resumo

O artigo aborda o surgimento da figura do curador e seu papel como agente cultural no contexto da história da arte, desde meados do século XX até o cenário atual. Tratando dos antecedentes históricos que envolvem a questão da curadoria, o autor classifica e analisa possíveis configurações para o trabalho do curador dentro do cenário da arte contemporânea, suscitando contribuições e obstáculos do impulso curatorial no processo de definição do gosto e na intermediação entre os artistas, obras e sociedade.

Palavras-chave

Curadoria, arte contemporânea, art establishment

 

Na segunda metade do século XX surgiu uma nova figura, na posição de agente cultural influente, que acabaria por roubar de modo eficaz a posição suprema da crítica e do historiador da arte no discurso da arte contemporânea. A figura era a do curador, diretor ou comissário de exposições. Entre os anos 70 e 90, à medida que os acadêmicos e críticos se tornaram menos influentes nas decisões sobre o destino da carreira do artista – especialmente na cultura metropolitana –, o curador começou cada vez mais a definir a natureza e a direção do gosto na arte contemporânea – tanto assim que, na virada para o século XXI, o curador passa então a representar a figura mais temida e talvez a mais odiada da arte contemporânea.

Antes do período mencionado, o curador era principalmente um agente provinciano com uma referência estrutural limitada, etnocêntrica, e também excêntrica, sustentada pela autoridade da qualificação e especialização acadêmica. O curador de arte contemporânea era um historiador da arte ou alguém com uma qualificação em arte, história da arte ou estética, que na trajetória de seu treinamento e carreira se interessou especialmente por um aspecto do período ao qual se dedicou, destinando seu tempo ao estudo do trabalho produzido de uma forma ou técnica específica, tal como pintura, desenho ou gravura, e, geralmente, tinha uma especialização em determinada área geográfica. Esse conhecimento específico também condenou o curador ao vínculo e dependência institucionais, além dos quais o único recurso possível era um emprego na academia. Ao final do século XX, entretanto, a autoridade do curador de arte contemporânea mudou sua base da qualificação acadêmica e especialização erudita para habilidades empresariais. Essas habilidades incluem desde um conhecimento mais amplo, mas também superficial, da área de interesse – apesar de ainda dentro de limites geográficos – até o domínio das idiossincrasias atuais do jogo da cultura global. Hoje, o curador de arte contemporânea possui um diploma em ciências sociais, é capaz de manter uma conversação sobre diversos tópicos além da vida e idiossincrasias de um único artista morto, goza da companhia de um amplo círculo de indivíduos que trabalham em mais do que apenas nas artes visuais e facilmente reivindica um lugar entre os mais visíveis “destaques da sociedade” de sua geração. O curador da arte contemporânea é uma parte sólida do circuito de moda Hugo Boss.

A profissão de curador na arte contemporânea foi diversificada e ampliada para fora da estrita, e possivelmente obrigatória, associação institucional que a caracterizou nas décadas anteriores. Novos espaços e áreas de prática surgiram, incluindo, por exemplo, aqueles que hoje são ocupados de uma forma mais significativa pelo curador independente ou viajante, 2 o qual é mais livremente conectado a galeria, museu ou coleção, podendo ainda agenciar projetos de mercado ou consultoria para essas instituições, além de perseguir projetos fora da esfera institucional. Isso significa que o curador agora pode existir e atuar sem a reputação e o estigma da instituição, dependendo, contudo, de instituições a fim de concretizar seus projetos.

É também possível hoje observar o curador em um número variado de configurações ou papéis, cada qual com diferentes atitudes em relação ao empreendimento da curadoria, estratégias variáveis de compromisso com a arte contemporânea e diversas implicações para com o destino e direção da arte e da prática artística, e das amplas estruturas e manifestações da cultura contemporânea. Vamos analisar agora alguns desses aspectos.

A primeira e mais tradicional dessas configurações talvez seja a do curador como burocrata, que se ajusta bem ao retrato convencional do curador institucional já mencionado. Como autoridade e funcionário institucional, o curador burocrata é fiel a dois fatores principais: primeiro, à instituição empregadora; segundo, à arte, a qual define a área de especialidade e devoção. Alguns argumentariam que existe um terceiro fator de lealdade: nomeadamente, o público. Mas isso é discutível, já que o interesse institucional abrange e ofusca essa preocupação, pois vê o público composto por patronos ou clientes e, portanto, assume a responsabilidade por sua definição nos termos corporativos apropriados. A fidelidade do curador ao público é, portanto, predeterminada pela definição institucional de público espectador. 3 Em sua essência, o curador burocrata tem suas obrigações básicas determinadas por exigências institucionais: ir ao encontro dos interesses do museu, galeria ou coleção; localizar a melhor, mais promissora ou quase sempre mais popular obra de arte para aquisição pela instituição; montar o mais popular ou o mais bem sucedido display para a instituição e, relacionado a este último ponto, especialmente hoje, atrair o maior público para o museu, galeria ou coleção e tê-lo “formando filas ao redor do quarteirão” – para citar um funcionário do Brooklyn Museum em Nova York. Em segundo plano em relação a tudo isso, está a lealdade pessoal do curador à obra de arte, que pode tomar a forma de uma defesa quase clandestina em que o curador burocrata luta para assegurar que a atenção e os recursos das instituições sejam aplicados em trabalhos e em artistas que são de seu interesse. Com efeito, quanto maior o poder que o curador burocrata exerce dentro da instituição, maiores serão o interesse e o compromisso da instituição para com aqueles trabalhos e artistas que o curador apóia; e quanto mais poderosa for a instituição, é claro, maiores serão as possibilidades de que tais trabalhos e tais artistas se tornem mais visíveis, mais próximos da legitimação e mesmo de sua canonização. Além disso, o fato de haver pouquíssimos curadores nessa posição de influência considerável significa que o círculo de artistas com possibilidade de acesso a sua promoção é particularmente pequeno, o que explica, de modo significativo, as tradicionais circunferências do jogo de canonização na arte contemporânea.

Seguindo de perto o que foi expresso acima, apesar de geralmente sem vinculação institucional, talvez também possamos identificar o curador no papel de connaisseur, o colecionador especialista e excêntrico cuja atração por uma forma particular ou trabalho, ou grupo de artistas é tão irracional quanto fielmente constante. Esse curador pode ou não trabalhar para alguma instituição ou desenvolver apenas os próprios interesses. O curador connaisseur monta um conjunto de obras conforme seus interesses e dedica-se obstinadamente a trazer-lhe visibilidade e publicidade a qualquer custo. Nesse caso, a fidelidade do curador é bem definida e situa-se quase inteiramente na obra e em si próprio; o apoio dirigido do curador ao trabalho e aos artistas é inextricavelmente ligado a sua própria necessidade de projetar um sentido de bom gosto e manifestar esclarecimento. Às vezes, esse desejo de distinção impulsiona o curador em direção a artistas e obras de arte que não são populares, bem-sucedidos ou amplamente reconhecidos, mas, apesar disso, são distintos e peculiares, o que os define como estando à parte em relação aos demais. Tal curador, então, considera sua obrigação e responsabilidade eternas trazer esclarecimentos aos outros, colocando-os a par dessa área de gosto única e especial. Nesse sentido, o curador connaisseur é como um explorador, um descobridor, um pioneiro cujas descobertas foram feitas para redefinir o gosto contemporâneo.

Talvez não haja um jeito melhor para ilustrar a figura do curador connaisseur do que com o exemplo do curador francês André Magnin, um colega que esteve ligado de forma complexa à arte contemporânea africana nos últimos 15 anos e junto com seus patronos ricos e poderosos, tem sido responsável por trazer uma enorme – e muitas vezes problemática e questionável – visibilidade a um punhado de artistas africanos que se tornaram muito conhecidos no mundo de hoje da arte contemporânea. O mais importante entre eles é o fotógrafo Seydou Keita, falecido recentemente. Como curador connaisseur, o principal interesse de Magnin é a arte produzida por artistas autodidatas ou artistas sem treinamento na academia, e esse interesse quase peculiar vem de uma idéia antiga e particularmente européia acerca do ideal do nativo criativo, o nobre selvagem ainda não contaminado ou corrompido pelo contato com a civilização, isto é, pela Europa ou pelos modos do homem branco. Esse artista nobre selvagem é melhor se for não educado ou analfabeto, não orientado nos caminhos da sociedade urbana moderna, não familiarizado com as formas globais contemporâneas, estratégias e discursos da arte e, mais importante, se não estiver disponível para falar ou viajar. Na avaliação de Magnin, como outros antes dele, a África é o lugar onde esse artista será talvez mais facilmente encontrado. Entretanto, a verdade, é claro, é que esse artista nobre e bruto, isolado do mundo moderno e completamente protegido da contaminação da modernidade, não existe, e já que esse artista não existe, tem que ser inventado – e essa invenção acontece mediante o complexo mecanismo expositivo e discursivo disponível para o curador. Durante o período em que esteve engajado com a preocupação do “descobrimento” e promoção dos artistas “nobres selvagens” da África, esse curador connaisseur e explorador pioneiro não desperdiçou energia ou gastos na construção de um discurso ao redor desses artistas e de suas obras, pela incansável orquestração de exposições de sua coleção em espaços geralmente de prestígio, quase sempre se oferecendo para pagar por tais exposições e chamando atenção crítica para as obras desses artistas; além disso, o que é bem mais perene, gerando literatura e documentação acerca dos trabalhos e artistas. Magnin tem sido bem-sucedido e hoje merece crédito pelo amplo reconhecimento dos trabalhos de artistas que, antes de sua intervenção, talvez fossem reconhecidos e tivessem alguma visibilidade dentro das sociedades ou culturas onde atuavam, mas não tinham a oportunidade, facilidade ou de fato a aspiração a obter o reconhecimento global e a visibilidade trazida a eles por seu trabalho. Devemos ainda creditar Magnin por não menos do que seis monografias e livros sobre esses artistas.

Como já disse, o objetivo do curador connaisseur é definir-se como diferente dos outros, mas ainda tentar não somente ampliar, mas redefinir a direção do gosto. O curador connaisseur compreende como responsabilidade sua gerar conhecimento sobre os trabalhos e artistas favorecidos, e causar a impressão no público de que eles representam o mais refinado e culto em termos de gosto – de que ao menos indicam a última e certeira direção da cultura. Seu chamado curatorial visa, portanto, apresentar as jóias ocultas de suas descobertas e garantir que serão apreciadas, consumidas e elevadas aos padrões culturais da época, mas não sem passar pelo prisma do entendimento de gosto do descobridor. Apesar de a preferência do curador connaisseur ser baseada em um desejo egoísta e apesar de tais desejos serem freqüentemente problemáticos e questionáveis, em sua leitura enviesada do mundo – como no caso da construção, por Magnin, da validade na arte contemporânea africana –, tal defesa é, todavia, apaixonada e geralmente alcança um nível de sucesso, e talvez seja até benéfica para os artistas favorecidos e suas obras. No caso específico do curador Magnin, aqueles artistas que desfrutaram de sua preferência também se beneficiaram com mudanças repentinas em seus destinos, em termos de visibilidade internacional, trazendo um nível de valor sem precedentes na apreciação de suas obras e um esforço dedicado para inscrever suas práticas na história da arte. Tudo isso talvez não tivesse se dado assim, sem esse apoio.

Claro que se questiona seriamente a futilidade ideológica que conduz tal apoio, como no caso do Sr. Magnin, e os perigos que advêm de tamanha futilidade, pois, quando o apoio óbvio, poderoso e eficaz da curadoria é cúmplice na disseminação de idéias problemáticas sobre certas sociedades e culturas, também aumenta o risco de que elas contaminem uma maior compreensão acerca de tais sociedades e culturas. Já que o curador connaisseur intermedeia o contato entre artistas e obras de interesse, as culturas e a sociedade, assim como com um público sem qualquer familiaridade com elas, e já que se dedica a reformatar os contornos do gosto para adequá-lo a suas descobertas, com o tempo e na ausência de contestação, o público começa a aceitar sua autoridade. O curador torna-se um árbitro do gosto ainda mais poderoso por causa de sua autoridade inquestionável. Além disso, devido à habilidade do curador connaisseur de trazer visibilidade ao trabalho e aos artistas de seu interesse, às vezes eles se tornam capazes de influenciar a direção da produção artística. Já que sua definição de formas válidas se prende à aceitação, ao reconhecimento e às vezes ao sucesso financeiro, a produção dos artistas começa a oscilar na direção de tais formas, e pode emergir um estilo totalmente novo, conduzido por essas definições de viabilidade e validade. O curador torna-se uma influência dúbia sobre a cultura.

Enquanto o curador connaisseur parece ser impulsionado por um senso egoísta de destino, há um terceiro tipo de curador que é conduzido, talvez, por desejos menos pessoais, o curador como corretor cultural. 4 Como o curador connaisseur, o curador corretor cultural emprega seus conhecimentos, autoridade e contatos direcionando-os à arte e aos artistas, que podem não ter acesso imediato aos patronos ou ao público, de modo a fixar-se no papel de agenciador cultural intermediário. O curador corretor cultural às vezes não possui vínculo institucional regular e, como o connaisseur, aprecia a mobilidade entre os espaços dos patronos, do público e de legitimação, e as regiões de intimidade da produção artística. Tem um olho aguçado para as obras de arte viáveis, um instinto para artistas agradáveis, um impulso natural acerca dos caminhos do gosto ou de demandas populares e uma mente empresarial rápida, capaz de inserir tais trabalhos nas correntes de reconhecimento e demanda. O curador corretor cultural, portanto, tem o instinto do galerista, a mobilidade e flexibilidade do empresário e a ousadia do agente publicitário corporativo; sua compreensão das idiossincrasias do gosto e das frivolidades do patrocínio não apenas ajuda a divinizar aquelas idiossincrasias e frivolidades, mas também a torná-las vantajosas. Para o curador corretor cultural, diferentemente do curador burocrata ou connaisseur, há pouca ou quase nenhuma ligação com o trabalho ou com o artista além do interesse fugaz do agente de negócios, que pode influenciar um pequeno nicho de gosto ou chegar perto de mudar as inclinações culturais de todo um zeitgeist como conseqüência apenas do potencial de visibilidade. Para ser bem-sucedido, o curador corretor cultural deve insinuar-se pelos espaços e locações certos, sejam comitês de aquisição institucionais ou os corações e mentes da máquina crítica; também deve obter alguma confiança dos artistas ou um relacionamento de dependência prontamente acordado devido a seu prontuário de bem-sucedidos apoios, mesmo se tal confiança for conflituosa. Na realidade, o curador corretor cultural é o mais moderno e atualizado mestre5 no mecanismo de visibilidade e pode usar, onde for possível, esse mecanismo num jogo discricionário para validar ou desqualificar artistas e obras. Como um hábil navegador da faixa da cultura, o curador corretor cultural é uma figura poderosa principalmente entre artistas, que talvez o concebam como uma inevitável porta de entrada para a visibilidade, como a figura de Cristo declarando “pois eu sou o caminho, a verdade e a vida, e nenhum artista participará de mostra em museu, bienal ou trienal se não por meu intermédio”. É por essa razão que o curador corretor cultural tem sido descrito como o papa da arte contemporânea e mitificado como a figura com a varinha de condão, cujo reconhecimento pode assegurar sucesso para o artista talentoso e experiente. É também nesse papel que muitos dos curadores internacionais têm-se manifestado hoje, com imensas redes de contato, infra-estrutura, lealdades e dádivas, tudo cuidadosamente cultivado, controlado e manipulado quase como um monopólio, de modo a conceder uma determinada forma de visibilidade e acesso a determinados artistas, enquanto retira de outros a concessão de tais benefícios.

A emergência do curador corretor cultural certamente situa-se no contexto peculiar das estruturas comerciais do mercado cultural contemporâneo, onde o display é parte de uma elaborada maquinaria discricionária de promoção e apreciação da mercadoria, em que espaços e caminhos de apresentação foram repensados – e outros foram inventados – para servir não apenas como introdução da arte a um público de espectadores, mas também como plataforma de legitimação no elaborado processo mitificador de validação crítica e mercadológica. A transformação do museu de arte contemporânea como empreendimento cultural em agregado corporativo com investidores ou diretores acionistas, ou de fato em uma instituição que tem que ser comercialmente viável, atraindo apoiadores e um público crescente por meio de exposições block-buster ou de eventos com artistas de sucesso, significa que o espaço do museu se tornou um espaço comercial que necessita redefinir sua confiabilidade e se fazer cúmplice na invenção de carreiras e apresentações factíveis. Além disso, apesar de bienais e trienais contemporâneas e outras feiras similares terem, inicialmente, a intenção de funcionar como espaços experimentais para trabalhos e artistas que não são necessariamente viáveis, do ponto de vista comercial, esses espaços e avenidas, no entanto, têm sido cooptados pelo elaborado mecanismo mercantil do jogo cultural como área de validação comercial, transformando-se, dessa forma, indiscutivelmente em espaços de desejo, e aqueles que têm controle sobre eles – sobretudo curadores – em poderosos corretores culturais. Devido ao fato de que a aparição em uma bienal, site, trienal ou outra feira internacional pode ser cuidadosamente orquestrada, manipulada e traduzida em viabilidade comercial significativa por marchands, patronos ou artistas individuais habilidosos, os curadores que estão associados com tais espaços têm sido vistos, até certo ponto, como possuidores das chaves de uma simples reviravolta do destino que poderia transformar uma carreira de obscuridade e fracasso em outra de grande visibilidade e sucesso. Infelizmente, é esse espectro de curador onipotente que hoje atrai muitos jovens para programas de estudos curatoriais ao redor do mundo.

Todavia, seria incorreto não reconhecer outro papel pelo qual o curador pode manifestar-se: o de facilitador. É claro que em todos os papéis descritos até agora o curador é um facilitador que possibilita visibilidade e reconhecimento, sejam quais forem os propósitos. Entretanto, é no papel do que poderíamos considerar um facilitador benigno e possibilitador, ao trabalhar com os artistas como um colaborador cujas contribuições permitem a realização e a efetivação do processo criativo – um defensor cujo apoio é conduzido não por armações mercantis ou egocêntricas, mas por um vínculo genuíno com a obra e com o artista por trás do trabalho –, que o curador chega mais próximo de seus objetivos. Como já argumentei, as origens da profissão de curador não estão nos espaços glamurosos do mercantilismo cultural que associamos com a curadoria hoje em dia, mas certamente em uma ocupação mais modesta, a curadoria religiosa ou monástica, cuja responsabilidade é vigiar os objetos icônicos, imagens e registros. 6 A vocação de curar remonta a uma profissão ainda mais modesta e zelosa, a de zelador ou enfermeiro, cuja dedicação é motivada pelo cuidado e amor pelo objeto sob sua responsabilidade. Em outras palavras, o papel ideal do curador é o de um vigia do processo artístico, objeto ou situação. Nesse papel, o curador é igualmente um defensor, como em todos os outros papéis, mas um defensor cujo impulso primordial é a empolgação e a satisfação de ser parte do processo mágico de transição de um trabalho de arte desde a idéia à ocupação do espaço público. Aqui, o curador não se vê como O expert, o árbitro poderoso do gosto, determinador final da qualidade, aquele cujas idéias estão sempre certas – para parafrasear Márcia Tucker, 7 a fundadora do New Museum de Nova York. Contudo, é claro que o curador tem conhecimento considerável de sua área de interesse, tem direito a posições e opiniões contundentes e pode influenciar os caminhos do gosto, sem fazer disso sua raison d’être primordial. O curador é inquisitivo, curioso, dedicado, estimulável e bem preparado para trabalhar com artistas a fim de estabelecer as conexões necessárias entre eles e o público. Essa responsabilidade modesta, mas altamente envolvente, pode ser definida como o fardo da curadoria.

Se aceitarmos que o descrito acima indica o papel ideal do curador, é então desconcertante que a imagem ubíqua do curador hoje seja a do corretor cultural poderoso, o alfa e o ômega, e que essa imagem deva se tornar o padrão de aspiração para jovens com intenções a seguir essa carreira curatorial. Pode-se imaginar, também, por qual motivo o curador se afastou da responsabilidade ou dever que acabo de descrever – de proteger, zelar, colaborar, ajudar e ensinar –, vindo em vez disso a constituir um tipo diferente de ônus (parafraseando Hans Ulrich Obrist): a figura que fica no meio do caminho – um obstáculo – e as implicações que esse estado de coisas pressagia aos artistas, à arte, à cultura em geral e à carreira de curador. Infelizmente, essa preocupação particular ainda precisa receber a atenção que merece no discurso da arte contemporânea.

Acredito que algumas das aberrações e extremismos que ocorrem na prática da curadoria hoje, sejam elas na forma de uma fuga cínica de profundidade e senso de responsabilidade ou o conseqüente ceticismo que agora persegue a profissão, se devem, em grande parte, à disposição dos artistas de submeterem sua independência e objetivos ao art establishment e à maquinaria do jogo cultural. O relacionamento desigual entre o curador e o artista hoje e a crescente propensão da arte contemporânea em direção à idiossincrasia trivial certamente se devem, em parte, à disposição predominante dos artistas a perseguir o sucesso profissional e a fama altamente individualistas, e a se humilhar aos pés de qualquer um que possua a habilidade de ajudar a pôr em prática tais objetivos arrivistas. Em seu desespero pelo sucesso individual, os artistas passaram a considerar o curador corretor cultural a facção mais poderosa na estrutura do mecanismo da cultura, aquele cujos favores têm que ser buscados quase a todo custo, para que o artista possa alcançar visibilidade, validação e um apoio efetivo.

É claro que não ignoramos o fato de que, como profissionais, os artistas precisam de certo sucesso para se realizar profissionalmente e continuar praticando; de que precisam de visibilidade e viabilidade financeira não como alternativas a sua condição de visionários, mas como requisitos para a sobrevivência, caso precisem arcar com as numerosas exigências práticas de sua profissão – desde o sustento das famílias até o pagamento do aluguel do estúdio, aquisição de materiais, força de trabalho e os necessários serviços especializados. Contudo, o carreirismo resoluto também já conduziu artistas a desistirem da força de suas posições como produtores dentro do campo da cultura, sem os quais não haveria arte, prática curatorial ou espaços para exposição – e que, portanto, deveriam ocupar um lugar primordial na estrutura de poder do jogo da cultura. O que surgiu, em vez disso, foi um relacionamento de dependência em vez de interdependência, com artistas mantendo pequeno poder de barganha – e quanto menos essa força for evidente, mais poderoso o curador corretor cultural se torna, determinando não apenas o destino dos artistas, mas também o destino da arte e a direção do gosto.

Além da evidente perda de auto-estima que essa situação trouxe aos artistas, também nos arriscamos a produzir uma cultura oblíqua, destituída de desafio, visão positiva e radicalidade. Pois, quando os artistas são pouco convincentes, dependentes e contidos, seja pelo Estado ou por corretores culturais, a própria cultura segue o mesmo caminho, por ter muito pouco a que aspirar. Sem dúvida, vivemos em uma cultura de recuo, e parece que, em relação à prática artística e ao lugar do artista na estrutura do poder cultural, a maioria das lições da década de 1930, e dos exemplos e ganhos dos anos 60 e 70, foi perdida. As barreiras para a independência dos artistas que os modernistas radicais – os dadaístas e grupos subseqüentes, tais como Cobra – romperam e a reivindicação de espaço e iniciativa que os conceitualistas obtiveram nos anos 60 e 70, por exemplo, raramente estão em evidência na maioria dos centros de prática de arte contemporânea hoje, a um custo muito grande para os artistas e para a arte. Um grande feito dos modernistas radicais, durante o início e meados do século XX, foi arrancar a arte das garras asfixiantes da máquina cultural, no momento em que os cubistas estavam perdendo sua alma e independência para o culto à celebridade e para a tirania dos marchands. Os artistas de vanguarda tomaram novamente as rédeas da situação, desafiaram as convenções do gosto que o mercado e os patronos haviam estabelecido na década de 1920 e redefiniram a arte fora da cultura do comércio. Salvaram assim, sem dúvida, a arte moderna dos compromissos de institucionalização e mercantilização que a haviam cercado, organizando espaços, empreendendo projetos independentes e colaborativos, formando cooperativas e montando seus próprios eventos, intervenções e exposições, ao mesmo tempo que evitavam os marchands e a burocracia dos museus – tornando-os desnecessários e forçando-os a se redefinir e reinventar.

Nos anos 50 e 60, acadêmicos e críticos tomaram o lugar dos marchands e passaram a determinar a direção e a validade da prática artística, especialmente nos Estados Unidos, exatamente como se começa a ver hoje no relacionamento entre a arte e a prática curatorial. Não é totalmente insignificante o fato de que as experiências dos anos 50, que definiriam o início da prática de curadoria na arte contemporânea, tenham começado na Europa e não na América do Norte. No final dos anos 60 e 70, entretanto, jovens artistas retomaram a iniciativa das mãos dos críticos e acadêmicos, e se restabeleceram no centro da produção cultural, com o objetivo de desempenhar o papel principal na definição das estratégias e formas de manifestação. Essa reafirmação de visão e independência dos artistas, por sua vez, tornou possíveis novos pontos de encontro entre a prática da curadoria e a arte contemporânea. O surgimento do curador independente e até mesmo de espaços independentes deve muito às ousadas e dramáticas táticas dos artistas, que evitavam o espaço tradicional do museu e em vez disso preferiam o espaço aberto ou fundaram seus próprios espaços. Jovens curadores da época, como Harald Szeeman, Alana Heiss, Marcia Tucker ou Adelina von Furstenberg, puderam imaginar, iniciar e realizar experiências ousadas de curadoria porque os artistas já haviam fornecido os exemplos que desafiavam a compreensão convencional da exposição e apresentação da arte. Muito pouco na cultura de exposições pode ser rivalizado com os eventos decisivos que artistas como Allan Kaprow, Yayoi Kusama, David Hammons e vários outros iniciaram nos Estados Unidos, ou a Arte Povera na Itália um pouco antes, ou Rasheed Araeen, David Medalla, Yoko Ono e outros na Inglaterra, longe da sisuda burocracia do art establishment e dos limites dos museus. A independência e a iniciativa desses artistas forneceu à prática da curadoria modelos aos quais aspirar ou se referir de modo construtivo, ao fomentar um relacionamento de intercruzamento e compreensão mútua, em vez de dependência e ansiedade, entre arte e artistas. Muitos curadores inovadores chegaram a suas concepções porque se aproximaram de artistas radicais, sendo assim inspirados ou desafiados a encontrar pontos de inserção igualmente criativos, longe do convencionalismo e da redundância.

Nos anos 80, esse senso de independência e iniciativa desapareceu quase por completo, exceto em locais pequenos de persistência residual ou em novas erupções ocorridas em lugares remotos na Inglaterra, Holanda e em alguns poucos locais. Hans Ulrich Obrist menciona exemplos na Inglaterra no início dos anos 90, quando artistas tomaram a iniciativa em vez de esperar pela iniciativa dos curadores, inspirando assim os curadores a desafiar igualmente suas próprias redundâncias e falsas suposições de proeminência hierárquica, e reconhecer os novos caminhos que os artistas estabeleciam como direções possíveis e viáveis para o impulso curatorial. 8 A descrição de Obrist de suas próprias respostas a essas experiências atesta, com exatidão, o fato de que o curador, em face de tantos exemplos inspiradores, é lembrado de que seu papel deve ser de facilitador em vez de suserano – podendo decidir aliviar o ônus do artista, incumbindo-se de fornecer ou aumentar recursos, ambiente e desafios a que os artistas podem recorrer para realizar seu trabalho. Mais do que um relacionamento de dependência e da conseqüente cultura da reclamação, o que emerge, em vez disso, é um relacionamento simbiótico de respeito e compreensão mútua, em que os artistas vêem o curador como um catalisador útil, e não como um obstáculo; um colaborador, e não um interlocutor inconveniente; um sócio no empreendimento de construir, e não um mero empresário usurpador que fica no meio do caminho. Por tornarem conhecido o fato de que os artistas também podem cuidar do negócio de se fazer visíveis, como afirma Rasheed Araeen, 9 artistas e curador juntos se re-situam nas estruturas do jogo cultural. Ao se capacitarem e devotarem a um processo orgânico de produção e realização, forjando novas alianças com o público e o patronato, nessa ordem, os artistas remodelaram o curador como um elemento facilitador, mas não incontornável, frustrando nesse processo os curadores e os espaços tradicionais de exposição, aos quais haviam hipotecado sua independência e prática.

Como já mencionado, seria errado, é claro, tornar essa possibilidade excessivamente romântica ou ignorar as realidades logísticas da máquina de visibilidade – especialmente em um mercado de arte cada vez mais globalizado, em que os campos de disseminação geográficos e sociais valem bem mais do que antes. Não se deve ignorar o fato de que poucos artistas, por falta de recursos, são capazes de fazer ou realizar, por si mesmos, trabalhos nas escalas em que são concebidos, e que um número ainda menor de artistas consegue expandir seu trabalho nos limites mais amplos da economia cultural global – do modo como os convites para projetos nas bienais e trienais internacionais ou as interferências de curadoria o fazem. Entretanto, essas realidades devem incentivar a redefinição de um lugar e um papel para o curador como zelador, colaborador e facilitador; como catalisador e possibilitador da arte contemporânea. A compreensão dessas circunstâncias deve inspirar o curador em direção à consciência clara e dedicada de sua posição e de sua missão junto ao processo criativo, de modo que a curadoria não seja mais vista como um fardo, mas como contribuição positiva ao processo.

Por fim, os artistas podem possuir a chave para desativar o fardo e o ônus curatorial que afligem neste momento a arte contemporânea. Indubitavelmente, uma vez que os artistas sejam capazes de desafiar as tendências curatoriais predominantes e, o mais importante, reafirmar sua independência e seu senso de iniciativa, um novo vigor e exuberância irão emergir na prática da curadoria e na arte contemporânea como um todo.

 

Notas: 

1 Rascunho de um ensaio apresentado no simpósio internacional sobre arte contemporânea, na Cidade do México, em 25 de janeiro de 2002. Gostaria de agradecer a Ery Camara, Marta Palau, Guillermo Santamarina, Miguel Angel Rios, Teresa Serrano e Sitac, que em épocas diversas e com habilidades diferentes tornaram possíveis minha visita e o trabalho com pessoas no México. Publicado com permissão do autor. (NE)

 2 No original, “independent or roving curator”. (NRT)

 3 No original, “viewership”. (NRT)

 4 No original “the curator as culture broker”. (NRT)

 5 No oiriginal, “the ultimate master”. (NRT)

 6 Olu Oguibe, “ The Curator’s Calling”, em Carin Kuoni, Ed: Words of Wisdom: A curator’s Vade Mecum on Contemporary Art, Nova York: Independent Curators International, 2001, pp.131-133.

 7 Veja Marcia Tucker, “Become A Great Curator In Six Simple Steps!”, em Kuoni, Ed., op. cit., pp. 170-172.

 8 Ibid.

9 A referência aqui é à coleção dos primeiros escritos de Araeen, Making Myself Visible, Londres: Kala Press, 1984.

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